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Criar vara de recursos hídricos é passo ousado e necessário


A proteção do meio ambiente tornou-se uma preocupação global e, por isto, tudo o que se relacione com a matéria tende a crescer em importância. Mas meio ambiente assemelha-se a um polvo com dezenas de tentáculos, abrange as mais diversas e diferentes atividades, da exploração mineral à moda.

O Direito, por óbvio, não fica alheio a este movimento. Basta ver o interesse pela área do Direito Ambiental e a criação de Tribunais Ambientais ao redor do mundo, inclusive pela China que, nas últimas décadas, apostou no desenvolvimento sem revelar preocupações com a sustentabilidade. O Brasil tem Varas Ambientais, mas a proposta aqui é mais avançada: Vara de Recursos Hídricos.

A administração judiciária não pode parar no tempo, tem que evoluir à medida que a sociedade se transforma. Quando assim não procede, passa a ser, nesta ordem, incompreendida, rejeitada e finalmente ignorada.

Mas o que justifica uma vara tão especializada? A resposta é simples. A água, outrora abundante em nosso país, vem se tornando um problema. Não se trata mais apenas da seca secular da Região Nordeste, que o desvio do rio São Francisco não solucionou. Outras regiões também padecem de problemas sérios, que vêm sendo tratados pelos meios tradicionais, sem resultados animadores.

Se a falta de água é do conhecimento público, o que poucos sabem é a extensão e a gravidade do problema. Inédita reportagem do jornal O Estado de São Paulo apontou que aconteceram, nos últimos cinco anos, nada menos do que 63.000 ocorrências policiais causadas por disputa de águas. Segundo o relatado, “hoje há 223 ‘zonas de tensão’ permanente por disputas por água no Brasil. Há dez anos, eram apenas 30, segundo a Agência Nacional de Águas (ANA)”.

Neste quadro, o aumento da população nas grandes cidades e as secas atuais podem trazer grandes impactos para suas populações. Por exemplo, a disponibilidade de fontes seguras para o abastecimento de água na região metropolitana de São Paulo, com cerca de 20 milhões de habitantes, é um desafio permanente. O mesmo se dá, ainda que de forma diversa, em outros estados. Em Goiás, no mês de outubro do ano passado, “Uma redução de quase metade da vazão do Rio Caldas, responsável por 20% do abastecimento de Anápolis, gerou a falta de água em 47 bairros da cidade”.

Mesmo com tal relevância, os recursos hídricos são pouco estudados nos cursos de Direito. Não fazem parte da grade de Direito Administrativo, não estão nas perguntas dos concursos e, nos tribunais, os precedentes são raros, principalmente na área criminal. O desconhecimento geral e o descumprimento da legislação são mais comuns do que se imagina.

A água é um bem que, na forma ditada pela Constituição Federal, pertence à União ou aos Estados membros (art. 20, inc. III e 26, I). Portanto, nenhum proprietário de imóvel rural ou município é dono da água.

A Lei 9.433, de 1997, institui a política nacional de recursos hídricos, dispondo, entre outras coisas, que a água é um bem econômico e sua cobrança permitida (art. 19 a 21). No entanto, pagamos apenas pelo tratamento e entrega do líquido e não por ele propriamente. A cobrança demanda um desgaste político que nenhum prefeito se animou a enfrentar.

No ano de 2000, a Lei 9.984 criou a Agência Nacional de Águas, que deve obedecer aos fundamentos, objetivos, diretrizes e instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, inclusive propondo o estabelecimento de incentivos à conservação qualitativa e quantitativa de recursos hídricos.

No mais, há leis municipais disciplinando o aproveitamento e uso racional das águas (p. ex., Curitiba, Lei 10.785, de 2003), outras regulamentando o aproveitamento de água da chuva para fins não potáveis e outras concedendo incentivo financeiro aos que preservam seus recursos hídricos, como é o caso das nascentes de Extrema, MG.

Muito mais poderia ser dito a respeito da necessidade de preservar os recursos hídricos para as futuras gerações. Mas, mantendo o foco, vejamos como uma Vara de Recursos Hídricos poderia auxiliar na minimização do problema.

Os Estados Unidos enfrentam problemas com recursos hídricos em vários estados. Vejamos um exemplo. No Estado do Colorado, foram criadas, em 1969, sete circunscrições judiciárias (comarcas) especializadas em recursos hídricos, cada uma correspondente a uma bacia hidrográfica. Cada uma delas tem um juiz de águas nomeado pela Suprema Corte Estadual, um engenheiro nomeado pelo estado, um árbitro indicado pelo juiz e um funcionário apontado pela Justiça local. Os juízes de águas têm jurisdição na solução de conflitos, uso e administração da água e em todos os outros assuntos relacionados com a matéria.

As vantagens da especialização são óbvias. Equilíbrio do meio ambiente, uniformização no tratamento da matéria dando segurança jurídica, análise por pessoas especializadas (não só o juiz), julgamentos com o exame das múltiplas consequências do ato (sociais e econômicas) e outros.

A competência de uma Vara de Recursos Hídricos teria que ser analisada dentro da realidade de cada estado. Todavia, uma coisa é certa: ela deveria abranger todas as áreas do Direito e não apenas a esfera cível ou criminal. Nesta competência, em princípio, poderiam entrar os crimes de furto de água, poluição, ações civis públicas envolvendo contaminação de águas superficiais ou subterrâneas, exploração econômica de cachoeiras, ações possessórias entre particulares cujo motivo seja disputa de águas, sanções administrativas e atos administrativos relacionados com uso e exploração de águas (p. ex., outorgas) e licitações.

Mas esta competência, por óbvio, não pode confinar-se nos limites de uma comarca. Imagine-se proteger o rio Tietê em São Paulo, capital, deixando de lado todo o território que ele percorre até desaguar no rio Paraná. O que se tem que evitar é exatamente a existência de decisões diversas para um problema único e isto só se consegue havendo apenas um Juízo.

Esta iniciativa não fere o princípio do juiz natural, que visa evitar a escolha de juízes e o direcionamento de casos. Ela pode e deve ser adotada no mundo contemporâneo, de peculiaridades jamais imaginadas, como única forma racional de soluções dos conflitos. Nesta linha decidiu o STF em 2008, em caso de crime contra a ordem econômica oriundo do Ceará, onde o TRF da 5ª. Região fixou competência da Vara Federal especializada para todo o estado.

De lá para cá inúmeras iniciativas foram tomadas no mesmo sentido. Por exemplo, o TRF da 4ª Região, através das resoluções 45 e 63 de 2018, estendeu os limites da 11ª Vara Federal de Curitiba, que é especializada em matéria ambiental, ao litoral paranaense, mesmo havendo uma vara federal em Paranaguá. No Rio de Janeiro, o TJ, em 12 de setembro de 2019, instalou a Vara Criminal Especializada no Combate ao Crime Organizado, com três juízes e competência territorial em todo o estado. As Varas de Execuções Penais atuam da mesma forma, competência jurisdicional além da comarca.

Nos estados de território maior, uma Vara certamente não será suficiente. Imagine-se na Bahia, cuja extensão alcança 567.295 km2, sendo maior do que a da Espanha. Uma vara apenas seria inviável. Mas uma Vara de Recursos Hídricos para as comarcas de cada bacia hidrográfica poderia ser um avanço inestimável na uniformização das decisões judiciais.

A criação poderia dar-se por lei ou ato administrativo do TJ. Nesta última hipótese, bastaria especializar uma vara de determinada comarca. O juiz de Direito poderia ser auxiliado por um ou dois juízes, a depender do volume de serviço. Os assessores precisariam ser, obrigatoriamente, pessoas de áreas interdisciplinares, por exemplo, um agrônomo e um economista. O processo teria que ser eletrônico, exatamente pela dimensão territorial da vara especializada. Assumir os processos antigos ou aceitar apenas os novos é algo que deve ser decidido após um levantamento estatístico.

É isto possível? Sim, com certeza. É fácil? Não, com a mesma certeza. Haverá oposição de várias origens, inclusive daqueles que são contra qualquer iniciativa, mas não dão solução para coisa alguma. Todavia, o problema tem que ser enfrentado. Antes que seja tarde demais.


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